29.2.08

DA TERRA Doze viagens pelos caminhos de Portugal






Autores: Paulo Caetano, textos
Rui Vasco, fotografia

Editora: MÁ CRIAÇÃO


Excelente álbum, lançado em Dezembro de 2005, com arranjo gráfico de grande qualidade e fotografia excelente.
Os textos, escritos de forma quase poética, levam-nos a percorrer o País à descoberta de 12 produtos da terra, entrando dez deles na tradição alimentar portuguesa: mel, sal, castanhas, vinho, queijo da serra, amêndoas, arroz, azeite, cogumelos e licores e compotas. Os outros dois, cortiça e linho e burel, estão também associados à actividade agrícola e muitas vezes complemento daqueles produtos.
Para além do rigor da definição dos produtos, com as respectivas classificações, são apresentadas em linguagem simples, todas as fases de preparação dos produtos até serem disponibilizados para o consumo.
Leia um capítulo por dia, deleitando-se com as imagem que o ilustram.

Elogio da Ginja


Autores: Paulo Moreiras, Texto
Paulo Cunha, Fotografias

Editora: Quidnovi


Quando em 2001 o autor Paulo Moreiras publicou, com o mesmo título, um pequeno livro, da Noctívaga Editores, fiquei com vontade de mais. Era um bom exemplo do tratamento que um produto tradicional, e bem português, pode ter. Mais, era um bom exemplo para formar e informar.
Publicada esta nova edição acrescentada e renovada, estamos perante um álbum que não só nos descreve a trajectória da ginja desde a antiguidade aos nossos dias, como da sua presença na literatura, a presença nos dicionários, as tradições populares, algum receituário e as tradições populares.
Fazem muita falta livros deste tipo, que definem os produtos e a sua aplicação.
Textos bem elaborados e excelentes fotografias. Valeu a pena esta segunda edição, que tem incluída a bibliografia.

O Azeite e as Azeitonas



Autor: António Manuel Monteiro

Editora: João Azevedo Editor


Este livro é uma obra surpreendente. Com o sub título “Receitas da Rota do Azeite de Trás-os-Montes” parece estarmos perante um livro de receitas. Mas não é.
As receitas são apenas o pretexto para o autor fazer um elogio permanente ao azeite e às azeitonas. As receitas são o mote para a apresentação das tradições locais e por vezes um léxico bem explicado da terminologia regional.
Sou suspeito nos elogios a este livro pela minha condição de Transmontano e pela admiração e respeito que tenho pelo autor.
No livro aprenderá o que são as alcaparras, as larotas, os beldros, as cascas, os cornipos, o bazulaque e porque se chama a sopa de tchis…e ainda muitos outros termos. E naturalmente também podem aprender e descobrir este receituário regional tão ligado aos produtos do título.
Este autor já nos tinha encantado com o livro “Estórias do Azeite”, e é colaborador permanente da revista “Ouro Virgem”.
Constituem o livro 11 capítulos de receituário para os quais foi elaborado, pelo autor, textos introdutórios por cada capítulo.
O livro é ainda enriquecido com dois textos introdutórios de Jorge Morais e Júlio Meirinhos. Apetece pedir que, terminada esta edição especial e grátis, seja feita nova edição para venda geral em todas as livrarias. As escolas hoteleiras que não esqueçam de enriquecer as suas bibliotecas.
Arranjo gráfico sóbrio e de muito bom gosto.




28.2.08

A Rainha que Virou Pizza



Autor: J. A. Dias Lopes

Editora: Companhia Editora Nacional



Sou suspeito a apresentar este livro. Porque sou leitor tradicional do seu autor, personagem que muito aprecio e admiro, e que tive a sorte de conhecer pessoalmente há vários anos. J. A. Dias Lopes é actualmente director da Revista GULA, Brasil, e publica também uma crónica no jornal O Estado de S. Paulo.
O livro é constituído pelas várias crónicas já publicadas nas edições referidas e apresenta de forma simples, mas com muita cultura e erudição, a evolução da alimentação através de pequenas histórias ilustradas, depois, por uma receita correspondente.
O título é apenas uma das histórias do livro, e que nos explica porque a pizza se chama Margherita. Em subtítulo “Crónicas em torno da história da comida no mundo”. Como no seu anterior livro “A Canja do Imperador”, o título é apenas uma dos seus temas.
Cada texto, para além do rigor histórico de cada situação, ajuda-nos a entender a alimentação em cada época. E as circunstâncias sociais desse tempo.
Iniciando com as sopas milenares, o livro atravessa todos os tempos da História não esquecendo figuras bem conhecidas e personagens famosos. Percorre vários países e passando até por Portugal.
De realçar a elaboração de vários índices que facilitam a sua consulta.
Este é um dos exemplos de excelentes livros publicados em língua portuguesa e que não se encontram no mercado livreiro em Portugal. Como a revista GULA! E o intercâmbio cultural da língua portuguesa?
Um livro para ler aos bocadinhos ou consultar as curiosidades.

ABC dos Sabores Portugueses e Mais Alguns



Autor: José de Roby Amorim

Editora: LAGONDA


Este livro, aparecido em Novembro de 2005, tem um subtítulo “Dicionário Gastronómico”, que lhe é bem ajustado.
Trata-se de uma obra organizada, por ordem alfabética, de termos de cozinha, vinhos e produtos associados. Apresenta também alguns nomes de personalidades que marcaram presença em matéria gastronómica.
De excelente aspecto gráfico, o autor convidou o famoso Miguel Castro e Silva para apresentação de receitas significativas do panorama culinário português, em versão contemporânea, e contou também com o grande fotógrafo Jean-Marie del Moral.
O seu conteúdo é rico, com algumas ausências do Portugal moderno na gastronomia, é uma obra de referência para consultas rápidas.
É apresentado sob a forma de álbum. Seria útil prever uma edição simplificada para ser uma obra recomendada nas escolas de Hotelaria e Turismo.
Aproveito para sugerir ao Autor uma nova edição do seu valioso livro “Da Mão à Boca”, revista e actualizada, que inclua também um índice e bibliografia.

A Cook's Tour



Autor: Anthony Bourdain

Editora: Bloomsbury


Quando iniciei esta rubrica dedica a livros relacionados com a alimentação/restauração, sempre pensei privilegiar as edições portuguesas e os nossos autores. No entanto, parece-me que também é importante, apresentar outros livros sobretudo quando se referem às nossas tradições.
Este autor, depois do sucesso do seu único livro traduzido em Portugal “Cozinha Confidencial”, publicou já em 2001 esta obra agora sugerida. A sua particularidade é exactamente o primeiro capítulo “Where Food Comes From”, dedicado à sua experiência efectuada em Portugal.
De origem francesa e radicado em New York com o famoso restaurante de sucesso “Les Halles”, decidiu viajar pelo mundo à procura do prato perfeito. E este livro é o relato do seu encontro com a comida não sofisticada, e mágica, pelos vários países visitados entre os quais Portugal. Este capítulo revela bem o entusiamo que lhe é dedicado pela autenticidade do acto, e seus derivados culinários.
Deliciem-se também, como o autor, a provar as coisas simples consequência da matança de porco e em ambiente familiar.
Este livro encontra-se editado, e traduzido, no Brasil pela Companhia das Letras.

12.2.08

Modernidade em Santarém 2007






Realizou-se a 27ª edição do Festival Nacional de Gastronomia de Santarém. O Festival sempre teve como elemento base de animação a participação de estabelecimentos de restauração que garantiram a presença da gastronomia de todas as regiões.
Recentemente, e designadamente nos últimos três anos, a direcção do Festival lançou o repto da presença da nova cozinha, ou da gastronomia contemporânea, nos almoços especiais, e destinados a representar uma região específica.
Iniciou em 2005, com o 4º Congresso Nacional de Gastronomia intitulado “A tradição face à evolução e modernidade”, discutiu-se a presença cada vez mais evidenciada de estabelecimentos com características culinárias modernas. Prometeu então o Festival uma abertura, no futuro, a estas novas tendências e que representam já uma fatia considerável no mercado da alimentação em Portugal.
Nesse mesmo ano o Ribatejo apresenta-se no Festival com uma ementa de revisitação da cozinha ribatejana, através do Restaurante Condestável de Luís Suspiro, e dando o exemplo da nova cozinha, que não é mais do que a base da verdadeira cozinha regional, valorizando os bons produtos de base, mas aliviada do excessivo, e com apresentação cuidada. Surge ainda esse ano a presença, discreta, das Equipas Olímpicas da Culinária.
No ano seguinte, 2006, para além da Representação do Ribatejo, novamente com o Restaurante Condestável do Luís Suspiro, também as Equipas Olímpicas se apresentam com uma refeição autónoma. Ainda em 2006 realiza-se o Congresso dos Profissionais de Cozinha que é o fórum mais qualificado da discussão da cozinha em Portugal, e efectua-se a entrega do prémio do Chefe Cozinheiro do Ano curiosamente ao ribatejano Nuno Mendes.
Em 2007 o programa foi mais audacioso. Para além da realização do Congresso dos Profissionais de Cozinha, procedeu-se também è entrega do prémio Chefe Cozinheiro do Ano e realizou-se a final do Concurso Nacional da Sanduíche. Foi lançado o desafio a algumas Regiões para utilizar os almoços especiais apresentando a realidade da nova cozinha portuguesa. Assim, logo para iniciar o Festival a Região de Turismo do Ribatejo, anfitriã, apresentou uma ementa confeccionada pela Chefe Nuno Mendes, Chefe Cozinheiro do Ano, e contou com a colaboração do Restaurante JF, de Santarém, que concebeu e executou a sobremesa. A ementa constava de um Estaladiço de Queijo de Cabra da Maçussa com Mel de Alfazema, Enguias de Escabeche sobre Gaspacho Sólido e Picadinho Português, Cabrito de Leite com Hortelã das Lezírias e Arroz de Maranhos. A sobremesa chamada Ribatejo Doce com Gelado de Limão e Goma de Citrinos, era uma apresentação do melhor que há em doçaria no Ribatejo.
No dia seguinte foi a agradável presença, uma vez mais, das Equipas Olímpicas da Culinária. São raras as oportunidades que o público em geral tem para apreciar as suas apresentações, talvez por isso foi a primeira refeição a esgotar nas vendas. Para não maçar e apresentar a listagem das iguarias servidas quero apenas referir a excelência de uma Empada de Rabo de Boi com Leitão cozinhado a baixa temperatura.
Outra refeição servida dentro do espírito da modernidade foi o almoço da Região Centro. A responsabilidade coube ao Restaurante do Hotel Quinta das Lágrimas de Coimbra, onde pontua o Chefe Albano Lourenço, com uma estrela Michelin. Aliás este restaurante é o único com estrela Michelin em que o Chefe de Cozinha é português. Excelente refeição constituída por uma Sopa de Peixe da Figueira da Foz, Salada de Camarão com Vinagreta de Pera, Cabrito da Serra Confitado com Grelos da Gândara, e a terminar um Leite-creme Queimado com Gelado de Tomilho e Telhas de Papoila. Para o café um conjunto de pastelaria variada da região.
Seguiu-se o Restaurante La Reserve, de Santa Barbara de Neixe, a representar o Algarve. Outro exemplo de como a cozinha regional, no seu melhor, pode evoluir. O Chefe Henrique Leandro apresentou para começar a refeição um prato a que chamou Sabores da Costa e do Barrocal Algarvio que era um misto de petiscos regionais. Depois umas Lulas Recheadas com Enchidos de Monchique, um Ensopado de Galo Caseiro com Feijão Verde e Xerém. Para Terminar uma Torta de Alfarroba sobre Salada de Laranja aromatizada com Medronho, e D. Rodrigo.
A região de Dão Lafões fez-se representar pelo Restaurante da Quinta de Pendão, sob a responsabilidade do Chefe Luís Américo. Refeição surpreendente iniciada com um Carpaccio de Vitela Lafões IGP, Bacalhau com Salpicão em Massa de Pão Rústico e uma bem conseguida Terrina de Morcela e Maçã Bravo de Esmolfe, e como sobremesa uma Pera Bêbeda com Mousse de Requeijão.
Para encerrar o Festival o almoço foi servido pela Região Autónoma dos Açores que encarregou a Escola de Formação Turística e Hoteleira de Ponta Delgada. Mais uma refeição inovadora e baseada na cozinha regional. Começou com Mousse de Polvo com Creme de Banana e depois Espadarte Grelhado com Açorda de Queijo de S. Jorge e Beterraba Agridoce. Seguiu-se um Lombinho de Porco com Enchidos dos Açores, Ananás Caramelizado e Espinafres Salteados e para finalizar Fondant de Mel, Mousse de Figo e Sorbet de Chá Verde.
As questões que frequentemente se levantam nem sempre estão bem colocadas. Porque não aceitar a modernidade da cozinha, ou simplesmente o seu processo evolutivo natural?
Seguramente hoje ninguém come com há 100 anos. O problema é não conseguirmos acompanhar a evolução da tecnologia e o que isso influencia as técnicas culinárias.
Voltando ao Festival de Santarém, a sua base continua a ser a cozinha regional portuguesa e instalada nos restaurantes, que representam todo o País. Com petiscos ou pratos completos.
E o melhor exemplo é o restaurante que representou o Ribatejo, o JF de Santarém, que corajosamente apresentou uma decoração do espaço mais moderna e nem por isso deixou de servir os petiscos, que ainda bem me lembro, desde a massada, passando pelos rins e os ovos mexidos com farinheira.
Os petiscos, ou os conceitos de “Tasquinhas”, lá continuam. Apenas se abriu a porta à representação da nova cozinha portuguesa. E ainda bem e com o contributo dos restaurantes.

BOM APETITE!

© Virgílio Gomes
Foto de Adriana Freire

10.2.08

Comida Simples, Boa Comida...



Quando por facilidade hoje falamos em comida simples, estamos a uma distância tão grande dos conceitos de cozinha primitiva, teoria tão bem desenvolvida por Felipe Fernandez-Armesto, como quase da distância que nos separa da invenção, ou aparecimento, do fogo.
O conceito de simples, hoje em dia, relaciona-se com conceitos de modernidade que naturalmente, e de forma empírica, já eram postos em prática noutros tempos; reagiam espontaneamente à Natureza. Hoje temos que reflectir, e aprender, para estar em sintonia com a Natureza. Males necessários da globalização galopante, daí o esforço (em contra ponto) necessário pela biodiversidade. Hoje, a luta permanente pelo que é autêntico.
Os conceitos de simples, mesmo nas artes culinárias, estão associados a conceitos de reflexão intelectual, capazes de ditarem modas. E com as artes culinárias desenvolve-se a gastronomia.
O que é simples é bom. O que é simples é fácil de aprender a fazer, e é mais fácil de aperfeiçoar.
O percurso da alimentação no mundo e depois de tantas gerações passou naturalmente pelo aparecimento ou invenção da cozinha. É este facto que vem alterar definitivamente, na história, as grandes mudanças sociais. A comida deixa de ter uma função apenas de sustento para criar circuitos de produção e distribuição. Em simultâneo as sociedades associam à alimentação rituais e magias, que perduram ainda nas sociedades de hoje.
Com a aprendizagem, e necessidades criadas pela nova produção alimentar, começam a distinguirem-se novas cozinhas. Assistimos assim à revolução do pastoreio. E como consequência, ou em paralelo, desenvolvem-se as actividades relacionadas com a domesticação e criação animal, selectiva.
Não podemos esquecer que hoje em dia temos que analisar os grandes movimentos, ou tradições, alimentares numa perspectiva cultural. E quando falamos em cultura temos obrigatoriamente que sentir as vertentes: artística, religiosa, geográfica, económica e científica.
Com os avanços civilizacionais uma grande e nova actividade desenvolve-se: a agricultura. 8.000 anos a.c. encontramos técnicas muito desenvolvidas de irrigação do Nilo, e temos referência de produtos alimentação em número muito elevado e que muitos desses produtos só chegam à Nova Europa depois das Descobertas. A ascensão e queda de algumas civilizações clássicas, revelam novos produtos e hábitos. Mas também atrasam a divulgação de outros pela necessidade de destruição da história pelo avanço das forças de ocupação.
A comida aparece-nos então como um meio e um índice de diferenciação social, desde a época medieval até ao século XX. Haveria designadamente dois tipos de alimentação: a de elite, palaciana ou burguesa e a do povo, a das grandes massas.
Com as Descobertas temos uma nova actividade em grande movimento no Mundo. O comércio de longa distância vem fazer aparecer os novos produtos e a partir daí o aparecimento do primeiro conceito de cozinha de fusão. As trocas intercontinentais obrigam a um novo intercâmbio de culturas que ultrapassam a alimentação. E os novos movimentos de mudança de mentalidades.
Chegados ao nosso tempo, e com a industrialização mundial, fomos obrigados a uma revolução ecológica, e aos reconhecimentos de uma agricultura biológica.
Viajámos de uma cozinha primitiva, a uma cozinha moderna ou evoluída, passámos pelo fast-food, depois pela cozinha científica e molecular, e parece querermos voltar à alimentação primitiva mas cuidada. O regresso às coisas simples.
Mesmo no nosso tempo não apagamos rapidamente as marcas da tradição alimentar. Certo que temos a informação, e modo de agir mais rápida. E temos mais opções. Mas também temos o tempo mais controlado e outro tipo de ambições. E exigências profissionais e sociais.
Quando nos anos 70 surgem os primeiros conceitos de Nouvelle Cuisine surgem logo os conservadores, e clássicos da época, reclamando a necessidade de manutenção das tradições. Precipitaram-se os tradicionalistas pois os inventores da nova cozinha, contemporânea, criam uma nova cozinha com base em princípios fundamentais associados a princípios de valorização dos produtos, simplificação da técnica culinária e eliminação de complementos inúteis.
Assumo que só há dois tipos de cozinha: a boa e a má. Independentemente das categorias regionais, nacionais ou internacionais.
Mas afinal o que faz a nova cozinha? Começa com o conceito de cozinha do mercado, quer dizer, utiliza os produtos que surgem na época que a Natureza naturalmente os produz, o que significa a época em que eles, produtos, têm o melhor sabor. Depois valorizar as cozinhas regionais, evitando complicações necessárias e reduzindo os tempos de cozedura. Associado a este tema surge também o conceito das cozeduras exactas que significa que cada produto tem um seu tempo, e diferenciado, de cozedura. Evitam marinadas e molhos pesados. Tem em conta a componente dietética e sente a necessidade de inovar constantemente.
Caminhamos portanto para uma cozinha mais simples, mais autêntica, com uma preocupação de valorização do produto de base.
Não esqueçamos que recentemente Dan Barber declarou que “o futuro da restauração no Mundo” será dos restaurantes que produzam os seus próprios produtos para o menu, em sistema de auto-suficiência e em rigor ecológico. Estamos a falar de gastronomia de elite??? Será a exigência do mercado???
Não posso deixar de referir o famoso Anthony Bourdain no seu livro “A Cook’s Tour” (Em busca do Prato Perfeito) que tendo dado a volta ao Mundo à procura de inovações culinárias autênticas, dedica o seu primeiro capítulo a Portugal. A sua surpresa vai para a espontaneidade, autenticidade, e entusiasmo das confecções primárias surgidas na sequência de uma matança de porco. Mas mais que a surpresa da comida, o seu fascínio foi ao “perceber o que está a faltar na experiência alimentar do americano médio. Grandes grupos de pessoas comendo juntas. O elemento familiar. A aparente crueldade de contactar próximo ao que se come”. E que numa matança de porco, come-se tudo. Mas de forma simples.
Hoje cada vez mais queremos apreciar o autêntico. O simples e sem constrangimentos.

BOM APETITE!

© Virgílio Gomes

Que mal nos fez a Alheira?


Já nos habituámos à imprensa sensacionalista. Por vezes até duvidamos da própria notícia.
Todos nós ficámos perplexos com o trabalho publicado no dia 8 de Março no jornal Público com a sequência de título e subtítulo: “Qualidade das alheiras é preocupante em termos de segurança alimentar” e “Bactéria responsável por abortos espontâneos encontrada em 60 por cento dos lotes industriais analisado por cientistas portuguesas”. A notícia assim apresentada leva-nos a pensar que estamos a assistir a terrorismo noticioso. É que para entender a totalidade da mensagem é necessário ler o artigo até ao fim. E, afinal, a bactéria encontrada é eliminada com a cozedura. Ora ninguém come alheiras cruas! Para quê o alarme dos títulos? É que mais grave, cinco dias depois, ainda um canal de TV emitia em notícia de rodapé os mesmos títulos.
Alguém que não gosta de alheiras? Ou uma distracção de escolha de títulos? Um jornal como o Público parece não precisar de utilizar estes meios sensacionalistas. Ou é para obrigar os leitores a lerem a totalidade da página?
A própria ASAE em declarações confirma “O estudo fundamenta-se em critérios da Irlanda e considera que as alheiras são produtos prontos a comer”. “A verdade é que as alheiras são submetidas a um tratamento térmico antes de serem consumidas cruas. E a temperatura faz toda a diferença.” Ainda bem que a ASAE nos tranquiliza.
Naturalmente assistimos depois à indignação dos produtores de alheiras, e de um modo geral, à dos Transmontanos. Alarmismos desnecessários e pouco educativos. A imprensa da Região reagiu e não só os produtores de Mirandela como os de Vinhais prestaram-se a dar declarações sobre a desinformação. Curioso é que não só a Região respondeu a esta ameaça como outros órgãos de comunicação de distribuição nacional, também não deixaram em claro este episódio. Apenas vou citar António Mega Ferreira que na sua Crónica da revista Visão de 15 de Março refere um telefonema durante o qual o seu interlocutor lhe perguntava: “Já viste, agora querem proibir as alheiras.” E explica a calma que tentou transmitir sobre a questão. Mas não deixou de ir a correr comprar alheiras antes que algum “defensor”, possivelmente atacado por excesso de zelo, viesse a retirá-las da circulação. Apraz-me registar que considera as alheiras transmontanas “indiscutivelmente, as melhores”. Como este exemplo quantos não terão acontecido? Pobres das alheiras que continuam a ser um bom petisco e um bom prato, para consolo de muita gente.
Afinal o que dizia o relatório científico? Foi detectada uma bactéria, Listeria monocytogenes, que também se pode encontrar no leite, em queijos, e outros produtos alimentares. Acontece que a bactéria é eliminada por elevadas temperaturas. Portanto, cozinhando bem a alheira, a bactéria é morta.
Apetece sugerir que esta mensagem é que deveria estar contida nos títulos atrás referidos. Ou apenas “Os perigos da alheira mal cozida”.
Neste aspecto tenho vontade, uma vez mais, quase de escrever um manifesto sobre a confecção da alheira. Ou melhor, sobre a forma de a prepararem nos restaurantes lisboetas.
Habitualmente servem-nos a alheira frita, à qual depois retiram a pele, acompanham com batata frita e ainda colocam um ovo estrelado. Ninguém em Trás-os-Montes come alheiras assim preparadas. Também não se comem, naturalmente, durante o Verão.
Fui habituado a comer a alheira, como prato principal, preparada em cima de uma frigideira sem gordura. A alheira é então picada e a sua própria gordura é expulsa. É essa gordura, e se vai mantendo na frigideira, que vai ajudar a cozinhar a alheira. Quando a alheira rebenta, e aqui está medo dos restaurantes que acham destruída a apresentação, é para mim um prazer pois aquela massa que se solta vai ficar estaladiça e constitui, para mim, o melhor da alheira. Depois sempre acompanhada com grelos. Ou cozidos, ou salteados com um pouco de azeite e alho.
Como petisco é só colocá-la sobre chapa grelhadora ou grelha em lareira, virá-la para cozer em toda a volta, e depois cortá-la aos pedaços.
Segundo o famoso Francisco Manuel Alves, o Abade de Baçal, a necessidade ajuda ao engenho, e fruto da perseguição que eram permanentemente alvo pela Inquisição, os judeus, “…não podendo estes comer carne de porco por imposição da sua fé, imaginaram um enchido, que, embora semelhante aos enchidos que por essa época eram o prato forte das gentes, não levasse a carne proibida.” O Abade de Baçal chegou a designar a alheira como o chouriço judeu. Manuel Mendes, chamando-lhe chouriça da resistência, vem também referir a origem da alheira no século XV, produto da necessidade de judeus e cristãos novos fingirem consumir um enchido, mas sem carne de porco. A alheira conteria várias carnes incluindo muita caça. Aliás hoje em dia produzem-se alheiras, também, só de caça.
Esta ideia de associar o aparecimento da alheira aos judeus fixados próximo da zona raiana, para facilmente fugirem para Espanha, parece querer justificar a prática da alheira mais ajustada à terra fria transmontana. Durante os finais do século XV e princípios do século XVI, ser-lhes-ia permitido atravessar as fronteiras em sentido da perseguição de que seriam alvo, tendo as coroas, portuguesa e espanhola, toleradas as infiltrações. Os judeus eram trabalhadores, detentores de fortuna e comerciantes necessários.
Mas durante quanto tempo a alheira foi confeccionada sem carne de porco? A partir de quando iniciaram a introdução da carne de porco? Não dispomos de registos. No entanto, o meu amigo e conterrâneo Armando Fernandes prometeu para breve uma nova teoria para esclarecimento, ou maiores dúvidas, sobre a história da alheira. Será que nos vai convencer da lenda da alheira?
BOM APETITE!
© Virgílio Gomes

A Religião e a Comida

Enquanto escrevia esta crónica ainda decorria o Ramadão. Como todos sabem o Ramadão é um período de jejum dos muçulmanos que decorre durante cerca de um mês não podendo alimentar-se, os seus crentes, no tempo que decorre do nascer ao por do Sol. Faz parte das obrigações dos bons muçulmanos. Para alguns o período de jejum, e o sentimento da fome, faz-lhes pensar nos que têm fome e por isso se obrigam a contribuir para alimentar os pobres.
Para evitar riscos de não cumprimento, existem tabelas que indicam a hora, dia a dia, a partir da qual se pode fazer uma refeição para a quebra do jejum. Já tinha estado várias vezes em países de religião muçulmana durante o Ramadão mas não tinha reparado na sua influência no quotidiano como assisti na Turquia. A primeira, e muito visível para um turista, é o anúncio em muitos restaurantes de preço especial para o “Iftar”, com indicação de preço fixo, e promocional, com a composição da ementa. Obviamente sem álcool. “Iftar” é o jantar que se segue ao período de jejum diário. No fim do Ramadão têm ainda um dia especial, que é o dia da quebra do jejum. Sem querer comparar podemos associar a Quaresma com o final no Domingo de Páscoa que é um dia de grandes comemorações gastronómicas.
Tive a sorte de ser convidado para participar num “Iftar” organizado diariamente por um negociante de tapetes. Nesta refeição estavam presentes para além do anfitrião, os seus trabalhadores e outros colaboradores, familiares e amigos. A refeição começou religiosamente às dezanove horas e dois minutos, conforme referia a tabela.
As mesas foram improvisadas pois o número de convivas ultrapassava a vintena. Não havendo lugares diferenciados as pessoas iam-se sentando à volta das mesas conforme iam chegando. Estava já colocado na mesa o pão, baixo e de mistura de farinhas, e uma salada de alface e tomate. Depois cada lugar tinha um prato, um copo, e uma colher e um garfo.
Foi colocado à frente de cada um de nós um prato alto com sopa: Sopa de Galinha com Aletria que vinha acompanhada com meio limão. O anfitrião avisa-nos que o limão é fundamental para o gosto da sopa e que cada um deve espremer a quantidade que entender. A sopa parecia um puré de cor clara. Provei sem limão e depois comi com limão. De facto a acidez do limão ajudava a compor o gosto final. Enquanto comia, e porque as conversas fluíam com entusiasmo, não tive coragem de perguntar como se fazia esta sopa. Já terminada a refeição lá perguntei ao dono da casa, que me confessou ter sido ele a confeccionar, a receita. No meio de um inglês pouco fácil remeteu-me para um amigo, Mustafa Kabak, e conviva do jantar, que me explicasse a respectiva confecção. Julgo ter anotado com cuidado e assim: cortam-se cubos da carne branca de frango que se alouram em manteiga até ficarem apenas selados. Regam-se com caldo de carne com muita abundância e quando estiver a ferver junta-se aletria para cozer em conjunto. Junta-se massa de pimentão picante e tempera-se com sal e pimenta. Deixa-se ferver até estarem o frango e a massa muito bem cozidos. Retira-se do lume e reduz-se a creme com uma varinha mágica. Serve-se com sumo de limão. Não sei se a receita está completa. A sopa que lá comi estava deliciosa.
Depois foi servida uma taça grande de arroz branco, coberto de um apurado picado de cordeiro. Cada um com garfo ou colher retirava uma porção. Não havia pratos individuais, mas também não havia discussão dos pedaços retirados.
Para terminar os famosos Baklavas, doce típico turco que consiste num pequenos rolos de massa folhada recheados de frutos secos trabalhados com mel. Alguns acreditam que tem poderes afrodisíacos!
Para beber apenas água e refrigerantes, e no final o tradicional chá vermelho da Turquia.
Mas mais importante que a própria comida foi o acto de comer em conjunto. A forma como decorreu o encontro, valeu mais que o valor gastronómico da refeição e o quase festejo de se alimentarem depois do sacrifício imposto pela religião. Que confessam não ter sacrifício, algum expressando-se com convicção. Curioso notar que um elemento quase não comia. Discretamente interroguei-o e disse-me que não tinha muita fome pois cumpria pouco com aquela prática religiosa. Afirmava, nos seus vinte anos, que tinha descoberto os prazeres da vida…!
Estas questões de religião são sempre difíceis de abordar pois começa-se sempre por uma questão de fé. Naturalmente sem discussões. O curioso é observar como todas as religiões interferem, e sobretudo marcaram, nos hábitos alimentares em todo o mundo.
Concretamente a carne, que é um dos alimentos mais valorizados, é em simultâneo o produto mais perseguido, com mais medos, e mais proibido. Da mesma forma que é dos produtos mais exultados, e continuando a ser um elemento identificador da gula.
Se o cabrito, borrego ou cordeiro são dos animais mais aceites e glorificados na alimentação de várias religiões, o porco é o mais banido.
Cá por Portugal, ou por razões económicas (o porco faz parte dos alimentos de subsistência), ou por observação ou provação para denúncia dos judeus, elevámos, e com muito saber e múltiplos sabores, o porco a elemento permanente da nossa culinária regional. E mais com honras de alto pedestal, utilizando da ponta do focinho à ponta do rabo. E as suas entranham também.
O porco foi o principal elemento diferenciador entre os cristãos de um lado e os muçulmanos e judeus do outro.
Hoje em dia para muitos a religião passa pela estética do corpo e as carnes e outros alimentos são trocados por vegetais e muitas vezes por pouca comida… e com a ausência dos seus prazeres.
BOM APETITE!

© Virgílio Gomes

Sobre o serviço de mesa



Muito se tem escrito, e discutido, sobre as novas tendências da cozinha e suas influências na postura da restauração. No entanto pouco se tem falado da necessidade do serviço de mesa acompanhar essa evolução e muito menos se tem perspectivado as alterações, e actualização do serviço de mesa, enquanto componente do negócio da restauração.
A arte de bem servir está muito para além de um serviço eficiente ou impecável. A prestação de serviço é muitas vezes a marca de um restaurante. Neste sentido se pode afirmar que a melhor das cozinhas não chega para fazer voltar um cliente desagradado ou insatisfeito com o serviço de mesa. O contrário também é possível: o desaire da cozinha pode ser compensado, ou apenas aliviado, com a eficiência do serviço de mesa.
A qualidade do serviço deverá, sempre, permitir criar um ambiente no qual o cliente se sinta bem.

É fácil constatarmos que os tempos mudaram. Da prestação da cozinha às expectativas dos clientes. Para além das refeições fora de casa serem uma obrigação para todos, estas refeições passaram a ser um motivo de descontracção, e por vezes de alívio, da pressão do quotidiano. As refeições deixam de ser analisadas na perspectiva do preço/qualidade para o serem no sentido do preço/prazer. O cliente já não quer ser só alimentado. Espera algo mais de uma refeição.
A refeição está também associada a novos conceitos de velocidade com eficiência. Também temos os clientes que esperam da refeição um espectáculo. Espectáculo de vários prazeres, visuais, sensoriais e de equilíbrio de permanência no local.
Ora as refeições são um instrumento de negócio que têm que ser tratadas em todos os seus detalhes.
Vejamos o que se pretende com a análise da evolução, necessária, do serviço de mesa. O serviço de mesa tem que evoluir porque a clientela assim o exige. Mudou a cozinha, mudaram os tipos de locais de restauração e mudou, especialmente, a clientela. Mesmo os conceitos de luxo evoluíram. O luxo hoje em dia não está só associado ao espaço, sua decoração e serviço de etiqueta. Muitas vezes o luxo significa eficiência e velocidade com conforto. A clientela de hoje não está preocupada, e até desconhece, se a regra é colocar o prato pela direita ou pela esquerda. Quer o serviço rápido, com elegância, com conforto e sem constrangimentos. O cliente de luxo não fica satisfeito, só, se a decoração contém dourados, cristais e veludos. O luxo também passa por ambientes minimalistas. Mas o que o cliente não abdica é da postura de educação e eficiência do serviço.
Nada pior para clientes de negócios, ou simplesmente namorados, se os interrompemos para lhes colocar o prato de acordo com a regra. O empregado tem que conhecer a regra para a quebrar sempre que isso signifique mais conforto, ou não interrupção, dos clientes. O serviço não se deve impor. Deve passar despercebido de forma aos clientes apenas terem consciência dele, no final, pela positiva.
Longe vai o tempo em que Grimod de la Reynière escreveu o seu famoso “Manuel des Amphitryons”. É possivelmente o primeiro grande tratado de alimentação para o novo conceito em restauração. É constituído por três capítulos: Tratado de Dissecação de Carnes, que ensina a cortar e trinchar várias carnes e curiosamente cinco peixes, Tratado do Menus onde propõe a composição de vários menus organizados por estações do ano, e ainda um último capítulo Elementos de Delicadeza “Gourmande”. Trata este último capítulo de regras e questões protocolares à mesa e pela primeira vez da forma de organizar o serviço de mesa e o serviço e degustação de vinhos. Este manual, editado em 1808, veio determinar as primeiras regras da restauração moderna. Ora tenhamos em conta que se destinava apenas a grandes casas para banquetes ou restaurantes de luxo da época. Locais apenas frequentados por clientes que conheciam todos as regras de etiqueta e do serviço naquele tempo!
Antes de mais vou assumir que o empregado de mesa é, acima de tudo, um vendedor. É o verdadeiro agente comercial do restaurante. É um permanente agente de relações públicas do local. É um comunicador. É um agente cultural que sabe informações sobre comida e vinhos. Deixemos a falsa questão que os empregados de mesa foram transformados em transportadores de comida. Também a transportam, e cada vez mais a comida está mais elegante no prato.
Hoje em dia não deverão existir as tradicionais guerras entre a brigada de cozinha e a de mesa. Tem que haver um espírito de equipa conjunto e até uma certa cumplicidade.
Ao empregado de mesa não se deve exigir a colocação de uma mise en place completa. Esqueçamos a apresentação/mostruário de todos os talheres e copos. Por perda de tempo na colocação e recolha do desnecessário, pela obrigatoriedade de lavagem dos artigos recolhidos, pela perturbação causada aos clientes que não sabem que talher ou copo usar, e finalmente pela própria elegância da mesa.
Ao empregado de mesa já não se deve exigir que saiba dobrar o guardanapo de dez formas diferentes. Cada vez mais a simplicidade impera até para evitar os demorados manuseamentos.
Cada vez se executa menos a chamada “cozinha de sala”, e por vezes, quando acontece, vem um elemento da cozinha executá-la. Possivelmente com mais sabedoria, eficiência e melhor tratamento das mercadorias. A cozinha de sala é sempre um complemento.
O empregado tem que saber os conceitos básicos de cozinha para melhor poder explicar e vender. Como deve saber explicar habilidosamente as propostas do dia.
Em relação aos vinhos, e hoje as cartas são por vezes longas, o empregado de mesa tem que saber sugerir os vinhos mais ajustados para cada prato, pelo que a sua cultura deva passar pela aprendizagem das castas portuguesas e adquirir sensibilidade para os defeitos primários do vinho, quando tenha que o provar. Que deveria ser uma prática corrente…! No capítulo dos vinhos o empregado de mesa é também um conselheiro, um comercial, um actor e basicamente um gestor. Não esquecer que o empregado de mesa deve conhecer o código de etiqueta do escanção, sem ter que ser um especialista.
Mas afinal quais devem ser, ou quais são, as grandes mudanças na exigência do serviço de mesa? Em poucas palavras: fazer aumentar o negócio, rentabilizando tarefas e criando uma melhor satisfação ao cliente.
Cada restaurante é cada vez mais um caso diferenciado. Caberá ao empresário seleccionar a melhor solução. Certo é que é a brigada de mesa que garante a fidelização da clientela.
E cabe também aos empresários dialogar com as escolas de hotelaria para lhes manifestar as novas exigências. Para alterar os métodos das escolas e melhor preparar os alunos para as novas realidades da profissão.
Aos empresários também o desfio de perceberem quanto a brigada de mesa pode, e deve, contribuir para melhorar os resultados. Muitas vezes perde-se clientela por um serviço apático, frieza no relacionamento, infantilidade de comportamentos, serviço robotizado, ausência de regras e o lamentável pingue-pongue. Mas perde-se clientela também porque não se pára uns minutos para reflectir.
O empregado de mesa é sobretudo um vendedor encantador, com atitude positiva, com um sorriso e com capacidade para surpreender o cliente.


© Virgílio Gomes
Foto Adriana Freire

Comida e arte




É quase impossível ter uma crónica sem que escreva sobre a necessidade de bons produtos para fazer uma boa comida. Qualquer tipo de cozinha só é boa se começar por esse princípio: os produtos.
Em Portugal, quando nos acusam de ter uma culinária pouco rica ou sofisticada podemos, sempre, responder com a qualidade dos nossos produtos agrícolas ou de criação animal. As práticas culinárias são um arrastar de tradições, mas os produtos são o resultado de um aperfeiçoamento constante do que a nossa Natureza sempre nos deu. E poucas vezes cantamos hinos isolados a esses produtos.
As representações artísticas desses produtos são muitas vezes fantasiosas e os produtos aparecem quase como um acidente, ou instrumento básico, para a construção estética. Os produtos estão lá, mas apreciamos e relembramos apenas o conjunto. Quando de repente nos lembramos das fantásticas naturezas mortas de Josefa de Óbidos todos associamos na memória a profusão de artigos crus ou confeccionados, e raramente fixamos as romãs, os queijos, as tigeladas ou os complexos doces aí representados.
Vários artistas, pintores portugueses, dedicaram o seu tempo e artes à pintura de produtos alimentares em naturezas mortas. Às naturezas mortas está quase sempre associado um sentido de inacção que José de Monterroso Teixeira atribui a essas manifestações pictóricas: “…processo que pode conduzir a obras significantemente vigorosas e ricas. Porém não passarão de objectos as mais das vezes agradáveis mas limitados, concedendo que muitas delas serão verdadeiras maravilhas que ultrapassam as «fronteiras do impossível», mas irremediavelmente as naturezas mortas situam-se no vestíbulo do estilo.”
Encontramos representação de produtos alimentares na pintura de naturezas mortas de grandes nomes portugueses. Para além de Josefa de Óbidos quero referir ainda Baltazar Gomes Figueira, ambos do sév. XVII, Joaquim Manuel da Rocha, (Séc. XVIII), Morgado de Setúbal (Séc. XVIII-XIX), Sanches Ramos (Séc. XIX), Luciano Freire, José Queirós, Simão da Veiga e Manuel Bentes, Abel Manta todos do séc. XIX-XX, e depois uma grande variedade do séc. XX desde Maria Toscano Rico, passando por Eduardo Nery até Jacinto Luís. E na estética da pintura, também se reproduzem os bons produtos.

Mas a designação de natureza morta, nos tempos correntes e comparada com os exemplos de pintura até finais do século XIX, parece perder sentido pela dinâmica que a própria pintura contemporânea contem. A pintura contemporânea vai muito para além do retrato dos objectos e dos produtos. Estes adquirem movimento, voam e ajudam a significar sentimentos.
E é nesse sentido que estou a escrever esta crónica e a pensar numa grande pintora, e minha particular amiga, Graça Morais. É difícil escrever sobre os amigos. As palavras adquirem outros significados. Para facilitar não vou escrever sobre ela mas acerca da sua pintura, que provavelmente é ainda mais difícil.
Graça Morais não pinta naturezas mortas. Os seus elementos estão vivos. E quando pinta, e sobretudo desenha produtos alimentares da terra, parecem quase uma consequência do trabalho das mulheres. Os produtos são uma forma de melhor enobrecer o trabalho árduo das suas Escolhidas. Mesmo isolados os seus produtos são poesia tranquilizadora, enquanto nos transportam para o mundo rural de onde provêm.
Quando se lê a pintura de Graça Morais temos a primeira sensação de força das expressões e depois, temos que ler atentamente todos os detalhes. Na série Terra Quente a delicadeza do desenho dos produtos leva-nos para a segunda leitura, não nos entusiasmando com os elementos fáceis. Mas depois lá os descobrimos, os cereais que nos darão o pão, as batatas, os animais de sustento… E nas Deusas das Montanhas lá estão discretamente os produtos que alimentam, que dão alguma riqueza depois do trabalho agrícola e sofrido. A Idade da Terra remete-nos grandiosamente para esses mesmos trabalhos agrícolas. E nas séries Metamorfoses II e III, a grande força do desenho com pouca variação de cor é tão forte que só depois observamos o que as mulheres têm nas mãos.
Ainda voltando à série Terra Quente, não podemos esquecer a simplicidade de batatas greladas, das cerejas, dos produtos das hortas, dos cabritos, das perdizes, das galinhas, … e claro, em outras séries a omnipresente oliveira e as azeitonas, e a matança de porco.
Não significa isto que Graça Morais seja uma pintora dos produtos alimentares. Eles estão naturalmente na sua pintura. São uma referência de apoio ao retrato constante que a pintora faz das suas vivências e sobretudo da sua Terra. E essa constância de representar as suas memórias, e que naturalmente lhe formaram o gosto, dão a força e o carácter forte à sua pintura. Mesmo nas séries Cabo Verde e Japão. E obviamente na recente série Os Olhos Azuis do Mar, nos aparecem os frutos do mar, os peixes e as conchas… e as gaivotas.
Graça Morais não pinta naturezas mortas. Os seus produtos revelam a vida. Saltam da tela ou do papel com a dinâmica feliz da pintura contemporânea. E com os seus sentimentos. Os produtos são a consequência, mas apenas ilustram a Vida.
Apetece pedir: para quando uma exposição temática com referência a estes produtos?
Para ilustrar esta crónica escolhi um desenho simples feito sobre papel de música. A simplicidade de um produto da Natureza: uma pêra. O rigor do desenho com a poesia da música. E ainda uma pintura onde aparece também uma pêra, com outra dimensão, outra função mas também com música e poesia.

BOM APETITE!

© Virgílio Gomes

Migas

Na sequência das açordas, e conforme prometi no respectivo texto, vamos ver como o pão é um elemento fundamental na tradição alimentar portuguesa e que ajudou a criar um valioso receituário culinário.
As açordas podem ser sopas, guarnições ou acompanhamentos, e pratos completos.
As migas e as sopas de pão vamos tratá-las separadamente, sendo certo que o que levou à designação de sopas foram os caldos aos quais se adicionava pão. Escrever “sopas de pão” parece então um pleonasmo. As designações populares levam a estas distinções e provocadas, designadamente, por outros elementos que engrossaram os caldos como a castanha e posteriormente a batata. E já com os ditos populares aprendemos que: “Sopa sem pão nem no inferno dão”.
As migas devem derivar do verbo migar que genericamente significa desfazer em migalhas ou esfarelar pão para o caldo.
Segundo Maria de Lourdes Modesto, na sua Grande Enciclopédia da Cozinha, as migas são um “Prato típico português feito de pão amolecido, cozinhado depois numa gordura, geralmente de porco.” Continua a sua descrição informando que geralmente se junta a carne e o toucinho que deram origem àquela gordura. “Este prato, que é muito vulgar no Alentejo e nas Beiras, também se pode fazer com batatas; esta forma tem, contudo, menor valor gastronómico e menor número de apreciadores”.
É curioso constatar que, de facto, as técnicas culinárias não se ajustam de igual modo a produtos distintos, independentemente da sua função semelhante. As migas são, de facto mais apreciadas as confeccionadas com pão.
No Dicionário – Almanaque de Comes e Bebes da autoria de Cláudio Fornari, apresenta as migas como sendo uma “Sopa de pão típica de Portugal, especialmente do Algarve, Alentejo, Beira e Trás-os-Montes, onde existe uma centena de diferentes receitas. Basicamente é água, miolo de pão, azeite e sal, havendo contribuição variável de alho, toucinho, presunto, chouriço, pimenta, pimentão, ovos, carne de porco, louro, banha, queijo, ervas…;”.
Maria Lúcia Gomensoro no seu Pequeno Dicionário de Gastronomia atribui a origem das migas a uma tradição espanhola de comer ao pequeno-almoço cubos de pão ensopados em leite, e depois fritos. Refere a autora que quando acompanhadas por carne frita se transformam em prato principal. Apresenta esta composição como especialidades de Aragão e outras da Andaluzia, e conhecidas desde a Idade Média. A autora refere ainda que migas são um “Prato típico do Alentejo, Trás-os-Montes e Beiras, é geralmente a transformação de pão numa massa, frita com gordura de porco e acrescida de carne ou peixe e temperos.”
Noutra obra, Diccionario de Alimentación de Ginés Vivancos, as migas são definidas como pão seco, esmigalhado, ensopado em água ou leite e depois frito em azeite, toucinho ou manteiga. Se lhe é acrescentada carne ou outro elemento as migas chamam-se ilustradas. Apesar de o autor se referir à tradição espanhola complementa a sua informação escrevendo que as migas em Portugal são mais populares e variadas que em Espanha.
Mas como terão nascido as migas? O que as separa das açordas? À primeira vista parece a forma de finalizar as migas, envolvendo-as na gordura. Mas, a sua origem? Possivelmente só nos aparecem depois das açordas e como consequência destas. As migas podem também aparece-nos como um prato de recurso pela necessidade de não desperdiçar pão. São as migas possivelmente um elemento da alimentação mais pobre e que o engenho transformou num prato/guarnição de elite apenas reconhecido a partir do século XX.
Não será em si, pela técnica, que se pode definir a cozinha local ou regional, mas sim pelo hábito da sua repetição. A cozinha não é apenas a cozedura mas a forma de por em prática continuada uma receita. A receita não será somente a sucessão de procedimentos, ela é sobretudo a recolha e acréscimos de produtos e da vontade dos consumidores através dos tempos. As receitas de cozinha, mesmo da autêntica cozinha regional, são dinâmicas e tendem a evoluir. Demoravam cem anos a alterar? Talvez. Hoje a evolução é mais rápida.
Por isso vamos encontrar uma variedade de migas em quase todas as cozinhas regionais portuguesas. Certo é que não encontramos essa designação nos manuais e primeiros livros de cozinha. Tanto em Domingos Rodrigues (1680), como em Lucas Rigaud (1780) até João da Mata (1876) o termo migas não é mencionado. No entanto, na Sopa de queijo, e lombo de porco ou de vaca, de Domingos Rodrigues, se lhe tirarmos a carne, temos umas migas pobres ou sem conduto.
Surpreendente é verificar que Carlos Bento da Maia, no seu Tratado Completa de Cozinha e Copa (1904) apenas apresenta uma receita de migas mas que são doces, e obviamente confeccionadas com migalhas de pão.
Curiosamente é com Olleboma, na sua Culinária Portuguesa (1936) que nos aparece a designação migas associada às Açorda ou migas de bacalhau e Açorda ou migas de Carne de Porco à Alentejana.
Manuel Ferreira, com a sua Cozinha Ideal (1943), é verdadeiramente o primeiro livro de cozinha para profissionais do século XX, apenas nos indica uma receita de migas de feijão branco e utiliza o pão de milho, sem ficarem muito enxuto e também não terem muito caldo para não parecerem sopa.
Parece consensual que dentro do capítulo das migas, há um receituário que parece por si só ser uma categoria que são as migas de bacalhau, que no Alentejo adquirem a designação de “gatas”. A tradição de fazer migas com peixe e designadamente de bacalhau deveu-se ao baixo preço que este gadídeo tinha. Acresce as regras religiosas que desde a Idade Média até ao século XVIII obrigavam a comer peixe em cerca de cento e trinta dias por ano.
Como podemos então caracterizar as migas? São um produto culinário elaborado a partir de pão ensopado e depois terminada a sua confecção com uma gordura envolvente em processo de ligeira secagem. Depois temos todas as variantes que têm a ver primeiro com a variedade do pão, depois com a substituição do próprio pão pela batata, o acréscimo de temperos e outros componentes como grelos, feijão, espargos, couves, ovos, mioleira, bacalhau, e depois os acompanhamentos onde predomina a carne de porco frita e cuja gordura ajudou a terminar as migas. Também se fazem migas doces.
O que deu origem às migas é efectivamente o pão, omnipresente, com uma tentativa de substituição pela batata, mas não conseguida. É ao pão que se deve o início da preparação de todas as receitas.
Seria uma longa lista enumerar aqui a presença mas migas em todo o receituário regional português. Como curiosidade refiro que na inauguração da primeira Pousada de Portugal, em 19 de Abril de 1942, no almoço oficial, que se revestiu de acto político importante para a época, um dos pratos foi “Migas à Moda de Peroguarda”. Trata-se de migas bem alentejanas que levam ovos e mioleira. Lançou-se a partir deste almoço a moda das migas em restaurantes de elite?
Quando este ano, em Julho, se elegeram as 7 maravilhas de Portugal, em simultâneo um grupo hoteleiro e de restauração (ao qual pertencem Chefes de Cozinha de prestígio) lançou, via net, um concurso para a eleição das 7 Maravilhas da Gastronomia Portuguesa de que faziam parte as migas mas que não alcançaram votos suficientes para se elegerem nas 7 primeiras.
As migas com as suas variantes podem agradar a todos os paladares. E para terminar apenas cito Aquilino Ribeiro: “Quem não tem paladar não tem carácter”.
BOM APETITE

© Virgílio Gomes
Foto Adriana Freire

Açordas

Parece inquestionável que a açorda é uma dádiva da presença dos árabes pelas nossas terras. Parece também que a açorda é um prato de subsistência, provavelmente na sequência de crises alimentares. E a sua chegada até nós deve-se à sua facilidade de confecção e sobretudo à mistura simples de produtos de base. O pão foi sempre, e ainda é, um alimento estruturante da nossa alimentação.
Quando analisamos as fontes, receituário, da presença árabe na península encontramos muitas sopas às quais se adicionava pão esfarelado ou cortado grosseiramente. Parece ser esta a origem das açordas. No entanto quase só na zona sul do país assumimos a designação açorda. Este termo nunca aparece associado às sopas de pão que ainda hoje se confeccionam nas Beiras ou Trás-os-Montes.
E temos a grande variante da açorda, que já não é sopa, e que se transformou num prato de referência em Portugal. Ninguém abdica na zona costeira das variadas açordas de peixes e marisco.
No tratado de cozinha árabe, Kitâb-al-tabîj, dos séculos X e XI, de autor anónimo, encontramos a primeira designação de açorda. Noutro tratado, de Ibn Abd al-Ra’uf, também se refere a açorda, com a designação de Tarid [thari:d] ou Tarida, em árabe, que quer dizer pão migado, ao qual se junta alho, coentros e água quente.
Em consulta de dicionários de árabe encontramos ainda o termo Ath thurdâ, que significa sopa com pão.
Mas é no século XIII que nos surge o mais famoso tratado da época. Trata-se da obra “Fudalat al-Khiwan…” escrito por Ibn Razin Tujibi entre 1238 e 1266, e cujo título eu traduzo, a partir do francês, para “As Delícias da Mesa e os Melhores Tipos de Comida”. Neste livro há um capítulo dedicado às Panades (sopas com pão) logo de seguida ao capítulo do pão. Encontramos 25 receitas de Panades maioritariamente enriquecidas com carnes desde o frango ao capão, passando pelo pombo e borrego ou pelo cordeiro. Também aparecem três receitas de leite que terminam sempre com açúcar e canela pelo que deveriam pertencem ao grupo da doçaria. Curioso é de notar que já existia uma receita de Panade afrodisíaca.
Surpreendente é verificar, quando consultamos receituário contemporâneo dos países do Magrebe, não encontrar as famosas sopas com pão. Será pela alteração na fabricação do pão? E isto devido à influência francesa durante a primeira metade do século XX?
Parece, no entanto, que será desta prática de sopas com pão que nasceram, e se transformaram, as nossas açordas.
Como referi no início o pão, ainda hoje, é um elemento estruturante da nossa alimentação. E no passado o pão teria que ser consumido na sua totalidade pelo seu valor de apoio permanente ao consumo. A sua aplicação na sopa seria uma forma de utilizar o pão mais velho e mais seco. Seria a sua absorção integral.
Encontramos em Gil Vicente possivelmente a primeira designação de açorda, na Farsa dos Almocreves: “Tendes uma voz tão gorda/ que parece alifante/ depois de farto de açorda”. E ainda não havia os actuais conceitos de estética do corpo, que hoje temos!
Todos sabemos que as sopas eram pratos de importância e capazes de fazer uma refeição completa e o pão cumpria bem a missão de a fazer engrossar. A castanha tinha utilização regional e a batata ainda estava longe de aparecer.
No primeiro livro de cozinha impresso em Portugal, de Domingos Rodrigues, “A Arte de Cozinha…”, em 1680, é feita uma clara distinção entre caldos e sopas, sendo que estas eram sempre confeccionadas com pão, ou este adicionado no final. Algumas vezes, e seria designação corrente, chamavam sopas às fatias de pão sobre as quais se colocavam produtos cozinhados especialmente carnes. Também Domingos Rodrigues nos apresenta três sopas doces, sempre com pão e açúcar e canela.
No livro que em seguida se publicou em Portugal, de Lucas Rigaud, “Cozinheiro Moderno, ou Nova Arte de Cozinha…”, em 1780, e com uma preocupação mais elitista da cozinha e a tentativa de instalação da moda francesa, não deixa de referir várias sopas iniciando a confecção da maioria com a preparação do pão. É pois constante que a designação de sopa esteja sempre associada ao pão.
Não encontrei a palavra açorda nestes nossos primeiros dois livros. Será que o termo estava destinado às confecções domésticas?
Em 1876 publica João da Mata o seu “Arte de Cozinha” especialmente destinado aos profissionais. Encontramos aqui a açorda com bacalhau, uma sopa de pão à portuguesa e ainda outras sopas com pão. A açorda aqui receituada não é uma sopa mas uma açorda muito semelhante às que hoje encontramos. Este livro entra com facilidade no século XX e será o manual dos profissionais da época.
Mas é com Carlos Bento da Maia, edição de 1904, com o título “Tratado Completo de Cozinha e Copa”, que as açordas aparecem como confecção culinária e ilustradas com onze receitas, e fazendo bem a separação das muitas sopas com pão. Estamos na época do aparecimento de restaurantes, e a cozinha regional começa a evidenciar-se. Continua a haver, no entanto, um espírito de copiar a cozinha francesa dado que apenas esta é assumida como alta cozinha.
A presença da cozinha regional portuguesa, nos restaurantes, é assumidamente um acto positivo a partir dos anos 40. A imposição legal de nas Pousadas de Portugal, inauguradas a partir de 1942, ser obrigatoriamente servida cozinha regional, e projectadas como locais de elite, levou muitos restaurantes a seguir o seu exemplo. Em 1936 publica-se o livro “Culinária Portuguesa”, de António Maria de Oliveira Bello no qual é verdadeiramente feito o elogia e defesa da cozinha regional, onde são apresentadas sete receitas de açorda. Já mesmo autor tinha publicado no livro “Culinária”, 1928, uma receita de Açorda de Alhos à Portuguesa enquanto sopa à base de pão, sobre a qual se colocava ovos estrelados preparados à parte, ou ovos escalfados… Será a partir desta receita que nos aparece a “açorda à alentejana”, que enquanto açorda é a única sopa do nosso receituário regional?
Em 1940 publica-se o livro “Volúpia” de Albino Forjaz de Sampaio, e na minha opinião o primeiro livro de gastronomia em Portugal. O autor na sua descrição do Portugal Gastronómico lá refere a açorda, e apresenta mesmo uma receita em verso do poeta José Inácio de Araújo: “Açorda Portuguesa”, que classificada de invenção portuguesa, alimento fortificante e capaz de ter derrotado os mouros.
Mas qual é a realidade das açordas na cozinha portuguesa? Primeiro temos a açorda/sopa de que a Açorda Alentejana é o melhor exemplo. Depois a glorificação das açordas como prato completo e a imensa variedade de receituário desde o Douro, toda a costa atlântica com peixes e mariscos, da Beira ao Alentejo com o bacalhau, e o Alentejo com as carnes de porco e enchidos. Temos ainda o conceito de açorda como guarnição, ou complemento, de que saboreamos o excelente exemplo com sável e respectiva açorda de ovas. E teremos sempre açordas maravilhosas enquanto mantivermos a qualidade do nosso pão. Podem-se criar novas receitas, e mais inventivas. Pode molhar-se o pão com canja de galinha e misturar depois o marisco. O que não pode ser alterado é o nosso pão.
Forçados seremos a alterar pequenos comportamentos de acabamento de algumas açordas, a exemplo da foto ilustrativa. O prazer de vermos misturar a gema de ovo crua não será mais possível por questões de segurança alimentar. Que pena!
Quanto às sopas de pão estas serão tratadas em texto próximo.
BOM APETITE!
© Virgílio Gomes
Foto Adriana Freire

É Canja, é de Canja…

Segundo alguns escritos a canja é de origem indiana e possivelmente transmitida através dos Colóquios de Garcia da Orta. Este refere “…o caldo de arroz, ou canje…” que aprendeu com a sua mais importante serviçal e cozinheira Antónia. O seu sucesso deve-se, naturalmente, à sua simplicidade, e assumida como elemento alimentar fundamental para recuperar a saúde. Ainda hoje é costume ouvir-se que “Cautelas e Canja de Galinha, nunca fizeram mal a ninguém”.
A sua origem poderá encontrar-se numa sopa de arroz da Índia, peze, à qual se juntavam umas ervas. Posteriormente juntou-se-lhe a galinha, receita que ainda hoje é vulgar em Goa. A própria canja, simples, provocou variações como a sopa S. Francisco Xavier que é uma canja consistente, mas picante. Ainda hoje me lembro da experiência, inesquecível, quando comi aquela sopa no Hotel Mandovi em Panjim, que continua a ser um marco da gastronomia portuguesa naquelas paragens.
Noutras regiões da Índia encontramos várias versões da peze, sobretudo junto de comunidades vegetarianas.
Outra versão atribui a origem da canja ao estado do Malabar também na Índia, onde se encontra uma sopa designada por kanji, que significa água com arroz. Este nome, e sua transformação, parece estar mais ajustado à actual designação portuguesa.

Basicamente a canja é constituída por uma sopa rala de arroz, com temperos, e o seu elemento tradicional, que é a galinha, ainda hoje se mantém por aquelas paragens. Os produtos, arroz primeiro, e galinha depois, acabam por cozer em simultâneo. Junta-se com frequência hortelã para finalizar.
Mais recentemente assistimos à substituição do arroz por massinhas, mas continuando sempre a ser uma sopa aguada.
Ainda me lembro de, quando vivia em Trás-os-Montes, a canja ter peito de galinha desfiado, os miúdos da própria galinha e, a grande alegria da pequenada, que eram os ovos em formação que praticamente só tinham a gema, em vários tamanhos. Também já encontrei canja com ovos esfarrapados.

O seu consumo sempre esteve associado ao equilíbrio alimentar e a regenerador de saúde. Doentes e parturientes eram tratados pelos supostos benefícios da canja. Mas não só. D. Pedro II, Imperador do Brasil, não abdicava de consumir diariamente a sua canja, até nos intervalos de espectáculos. A tradição desta canja levou o grande investigador e ilustre director da revista GULA, J. A. Dias Lopes, a publicar um livro cujo título é “A Canja do Imperador”. Segundo relatos do escritor R. Magalhães Júnior, o Imperador quando assistia aos espectáculos saboreava “uma canja quente entre o segundo e o terceiro acto, que só começava, por isso mesmo, ao ser dado o aviso que Sua Majestade terminara a ceiazinha”.
Temos também registos curiosos no Palácio da Ajuda, em cuja cozinha teria que haver, sempre, canja fresca confeccionada para a Rainha Dona Maria Pia pois acreditava que a canja era fundamental para a manutenção da saúde e, portanto, a consumia diariamente.
Mas não era apenas a Rainha Dona Maria Pia que gostava de sopa. “Todos os dias vinha à mesa real uma terrina de canja e uma travessa com galinha cozida e arroz branco guarnecido com prezunto e toucinho…
Todos os Braganças gostavam de canja… “

Mas é no Brasil que encontramos a canja mais consistente. A canja é uma sopa substancial, quase uma sopa completa, quer dizer, capaz de substituir uma refeição. Não encontramos um caldo leve e ralo mas uma sopa espessa onde entram vários legumes e sempre cenoura e até batata.
Ainda recentemente, no Brasil e em Fortaleza, cheguei ao hotel depois de um almoço tardio e pesado, e sendo horas de jantar dirigi-me ao restaurante do hotel pedindo uma sopa leve e uma peça de fruta. O chefe sugeriu-me uma canja de galinha, e tendo-me esquecido momentaneamente que estava no Brasil, lá aceitei a canja. Minutos depois chega a canja que mais parecia uma sopa da pedra, ou do Brasil uma sopa de entulho tão tradicional nos pagodes ou costumeira nos ensaios das escolas de samba do Rio de Janeiro. Assustado e meio arrependido lá provei a canja. Não resisti e prontamente comi a segunda colher…e devagar, e deliciado, lá acabei a canja. Fiquei cliente daquela canja, não só pela sopa em si como pela disponibilidade da brigada do restaurante que passou a perguntar-me que tipo de espessura queria para a canja e que tipo de legumes queria ser incluídos! Surpreendente. É assim que se ganham os clientes.
Sem querer fazer publicidade, mas merece, o Hotel Luzeiros em Fortaleza é um oásis de tranquilidade e bom ambiente. Com um discreto restaurante no piso da entrada tem um pequeno capítulo de cozinha portuguesa. Para além da cozinha de influência portuguesa o que mais surpreende é a hospitalidade e a capacidade de reacção do todo o seu pessoal. Confesso que sou suspeito. Há anos que este hotel é a minha casa em Fortaleza. Talvez por isso mesmo. E a vantagem de estar na Beira-Mar…Se decidirem ir a Fortaleza tentem o Hotel Luzeiros.

A prática da confecção da canja vulgarizou-se, e transformou-se numa técnica básica de sopas leves. Em Portugal faz-se canja de peixes, de bacalhau, de cadelinhas e outros bivalves, caça e outras carnes. Deixemos aceitar que a canja é um produto de fusão.
Para além dos produtos já mencionados, a canja, é enriquecida com outros produtos vegetais e ervas aromáticas.


O termo canja vulgarizou-se em gíria popular como uma expressão de facilidade, que corresponde à execução culinária. É corrente ouvirmos dizer que uma tarefa é de canja quando é simples de fazer, ou é canja como significado de conseguido pela facilidade do fazer.
Ser de canja é ser negócio fácil de obter, de fazer…!

BOM APETITE!

© Virgílio Gomes
Foto Adriana Freire