O tempo passa depressa. Parece que foi há pouco tempo e afinal já passaram 10 anos. Vou escrever sobre a EXPO 98. Mas na perspectiva gastronómica, e sobre o exercício de inventariação da culinária de encontros no Mundo, do Pavilhão de Portugal. Como Portugal foi verdadeiramente o instalador da cozinha de fusão hoje tanto propagandeada, e nem sempre com a retaguarda cultural que o assunto merece. Faz-me lembrar um grande cozinheiro francês que se instalou há duas décadas no Brasil e esteve no ano passado em Portugal a apresentar a sua cozinha de fusão. Dizia ele que foi o primeiro a divulgar a cozinha de fusão entre o Brasil e a Europa (querendo dizer a França). Claro que no fim do seu discurso fui ter com ele dizendo-lhe que não concordava com a sua afirmação e porquê. Explicações para cá e para lá, afirmava-me que a diferença é que ele cria pratos novos com essa consciência. Respondi que possivelmente os pratos que ele inventa ficam no seu restaurante ou possivelmente nos livros que edita, mas a grande vantagem da presença dos portugueses é que a nossa cozinha de fusão ficou por várias gerações, e entrou no património cultural do Brasil, e são tradições dificilmente em extinção. Mas não foi só no Brasil! Ainda hoje em Goa se come a cozinha de cruzamento das duas culturas. E em muitos outros Países.
O termo cozinha de fusão é gratuitamente utilizado. Desde que haja misturas de produtos ou técnicas de regiões, ou países, diferentes toda a gente chama de cozinha de fusão. A cozinha de fusão não é tanto uma combinação e uma mistura de ingredientes mas especialmente um encontro de culturas que cria pratos naturalmente novos. Esta mistura de culturas manifesta-se de tempos a tempos em criações culinárias verdadeiramente novas e exultantes. Mas o mais importante, e ainda mal inventariado, são as receitas que perduram, que entram na tradição, independentemente da consciência ou contribuição directa para os conceitos de cozinha de fusão. Vários autores sustêm que a cozinha de fusão é essencialmente um dos processos naturais pelos quais as cozinhas evoluem.
Isto tudo a propósito do programa gastronómico do Pavilhão de Portugal. Este tinha três grandes atractivos: primeiro o próprio edifício, como objecto público, e um valor arquitectónico invulgar; depois os conteúdos culturais e alvo das visitas intermináveis; e o terceiro um conceito gastronómico arrojado. Constituíam a área de alimentação e bebidas uma cafetaria no rés-do-chão das arcadas voltadas para o rio, onde eram servidos petiscos portugueses ou associados semanalmente a carta do restaurante. No primeiro andar um restaurante gastronómico com um programa de ementas semanais sobre as quais escreverei mais adiante. Ainda no primeiro andar, várias salas de banquetes onde era servido o almoço oficial do dia do País, e outras refeições especialmente ao jantar e de grande dimensão.
Com um ano de antecedência iniciámos a fazer o programa gastronómico para todas as situações mas com coerência em relação ao programa geral, que seria uma imagem de Portugal. Por iniciativa da Comissária de Portugal, D.ra Simonetta Luz Afonso, o programa tinha que ser rígido e bem definido: Portugal e as tradições portuguesas. Mesmo os detalhes tinham que ter resposta na cultura. O programa foi definido e graças à persistência da Comissária o programa não se alterou mesmo quando alguns agentes tentavam querer ementas com a vulgaridade de uma cozinha afrancesada e mal copiada.
O Pavilhão estreou-se na véspera da inauguração oficial com um jantar com vários chefes de estado que chegaram para o grande dia. Do jantar constava simplesmente “Salada de Mariscos da Costa Portuguesa”, “Lombos de Cherne com Coentros Frescos”, “Queijo Serra da Estrela”, “Toucinho-do-céu de Guimarães”, e café com “Nozes de Cascais”. Na mesa apenas pão de centeio.
Mas o desafio maior foi criar um programa global para as dezanove semanas que durou o evento. Foram criados três temas que davam cobertura a algumas semanas. Assim, e porque o programa se chamava “A Viagem dos Sabores”, o primeiro capítulo que abrangia as três primeiras semanas era “Os Frutos da Terra”, cada semana dedicada respectivamente ao Pão, Azeite e Vinho, três elementos estruturantes da alimentação portuguesa.
O capítulo seguinte “Por Entre Mares” era o grande encontro de culturas do Mundo através das viagens, a cozinha de fusão, e com cada semana destinada respectivamente aos Mares do Brasil, Mares do Oriente, Mares de África, Mares do Índico e uma última semana “Sabores do Mar” para o elogio das Costas Portuguesas.
As restantes semanas eram dedicadas às regionais de Portugal e Ilhas com as seguintes designações poéticas: “Para lá das Serras”, “Entre Rios”, “Ilhas Atlânticas/Ilhas Afortunadas – Açores”, “Beira Serra”, “Nas Margens do Mondego”, “Nas Lezírias do Tejo”, “À Volta das Sete Colinas”, “Ilhas de Machim/Ilhas Afortunadas – Madeira”, “Pelas Planícies”, “Jardim das Amendoeiras” e para terminar “Doces Aromas” com uma mostra da doçaria nacional que foi o sector gastronómico que mais se valorizou depois das Descobertas.
No restaurante havia uma carta fixa com representação de todo o País sendo que as sugestões mudavam semanalmente de acordo com os temas atrás citados. Este restaurante servia em média 450 refeições com 90 lugares. Após estes anos passados ainda recordo com satisfação alguns clientes que fazia questão de semanalmente vir degustar as sugestões. Foi um trabalho árduo e especialmente recompensado pelas reacções dos clientes.
Quanto aos banquetes foi interessante, e um desafio, mostrar que é possível servir as nossas tradições mesmo em refeições oficiais, e repito a proeza de apenas servirmos fatias de pão de centeio.
A culinária portuguesa, tantas vezes acusada de bruta, pouco fina e fora de moda, tem condições de se apresentar a qualquer tipo de mesa. Alguns chefes de cozinha estrangeiros têm chegado aqui e descoberto a riqueza dos nossos produtos e têm tratado bem o tipo de confecções que ainda valorizam mais os produtos.
No ano seguinte ao da EXPO 98 a Gastronomia Portuguesa foi elevada, por decisão de Conselho de Ministros, a Património Cultural. E agora? Quem identifica, quem inventaria, e quem decide o quê dentro desta classificação?
Apetece-me agora recordar uma Exposição em Sevilha. Não a de 1994, mas a de 1929 onde Portugal se apresenta orgulhosamente com os seus produtos agrícolas. Certo que não era uma Exposição Universal mas Latino-Americana, mas o Pavilhão de Portugal era tão imponente que ainda hoje lá se mantém. E o espaço destinado à Agricultura tinha o tamanho do Comércio e Indústria juntos. O seu catálogo apresenta já em 1929, Portugal como um país turístico e com equipamentos modernos. Quanto à Agricultura tinha os seguintes principais sectores: Azeite de Oliveiras e Azeitonas, Frutas frescas, secas e preparadas, Vinhos, Licores e Aguardentes, Cereais, Legumes, Hortaliças, Plantas Industriais e seus Derivados, Peixes em conserva e em salmoura, …
A auto-estima naquele tempo parecia diferente. Aprendamos a valorizar o que temos de melhor.
Foto: (C) Adriana Freire