O padre Manuel Bernardes (1644-1710) foi um péssimo amigo da cozinha e dos cozinheiros. Este ilustre homem da Igreja, e líder de opinião naquele tempo, escreveu que “O demónio é cozinheiro; se vê que não gostamos do pecado guisado de um modo, tantos temperinhos lhe busca, até que nos abre a vontade, e se não levamos todo, contenta-se com que provemos algum bocado.” E continua afirmando que “comer saboreando-se e gozando os manjares não é de homem, mas de animais imundos que a toda a pressa e com toda a aplicação grunhem, e fossam, e se atolam no lameiro.” Mas vai mais longe afirmando que o taberneiro que baptize o vinho os seus pecados lhe serão perdoados. Claro que hoje quem misturar água ao vinho poderá ir preso, e justamente.
Já lá vai o tempo em que alguns prazeres eram associados ao pecado, e os artífices dessas Artes, os principais culpados. Apetece dizer hoje, Benditos cozinheiros, ou Benditos provocadores do pecado da Gula!
Estas afirmações devem-se ao início do século XVIII, quando apenas estava ainda publicado um só livro de receitas, e do cozinheiro da corte. Ainda não havia restaurantes em Portugal, com as características de hoje.
Dispomos de relatos curiosos de estrangeiros que visitaram Portugal nos finais do século XVIII e princípios do século XIX, depois de já conhecerem outros países, e que nos relatam o que seria a alimentação e os estabelecimentos de alimentação ao público mais conhecidos, que eram as hospedarias.
J. B. F. Carrère, em 1796 escreveu o seguinte: “Chega a hora da refeição: uma toalha com mais de oito dias de serviço, um garfo de ferro ferrugento e gorduroso, pratos rachados ou esbeiçados, sopa aguada, guisado a tresandar a fumo e com molho só temperado com sal, e um assado duro, seco e queimado, vão sendo postos na mesa que está tão suja como o chão em que assenta.
Em Lisboa há muitas hospedarias, mas nenhuma é boa. Numas as refeições são em mesa redonda e a preço fixo; noutras come-se o que se pedir, pagando-se conforme os pratos escolhidos.
…As hospedarias portuguesas são as piores, as melhores são dirigidas por estrangeiros.”
Outros viajantes escreveram sobre Portugal naquele tempo como Dabrymple, Costigan, Murphy, Gorani e especialmente William Beckford que nos deixou as suas memórias em livro nos dois períodos que viveu entre nós.
Mas estamos a entrar no século XIX onde as referências culinárias, o aparecimento dos primeiros restaurantes, a publicação de vários livros de receitas, a referência à própria gastronomia na literatura portuguesa, vão alterar as mentalidades da época.
As grandes informações e modas continuam a chegar de França, onde se inicia a publicação de crítica gastronómica. Basta lembrar Grimod de la Reynière, com os seus Almanaques, e que ainda publica o Manual dos Anfitriões em 1808, onde refere o papel importante dos Chefes de Cozinha. No entanto alerta que, um grande Chefe se estiver ao serviço de um grande senhor mas que não fale a sua linguagem, e não exija dele em permanência, em breve também o grande chefe entrará em decadência. É o conceito de grande Chefe executor e capaz de por em prática os anseios dos outros, do seu senhor, do seu mestre ou patrão. Claro que Câreme saiu deste grupo, criando o seu próprio estilo.
Mas regressemos a Portugal nos inícios do século XX.
Carlos Bento da Maia publica em 1904 o seu Tratado Completo de Cozinha no qual se lamenta do mau ensino profissional comparando com França “onde os discípulos, assentados nas suas bancadas, assistem às prelecções de um cozinheiro, que, tendo por trás da sua mesa um fogão, descreve o modo de executar, e executa ao mesmo tempo, os trabalhos relativos às iguarias que deve preparar durante aquela lição, iguarias cujos nomes estão indicados numa tabuleta do mostrador da aula.”
Em contrapartida queixa-se que “No nosso país, infelizmente, estão muito atrasados os ensinos profissionais e a maior parte dos directores de asilos têm o mau senso de ter serviçais para as educandas; de modo que em vez de criarem raparigas aptas para ganhar facilmente a vida com honestidade, criam pseudo – senhoras pretensiosas com desprezo pelos trabalhos manuais e tendo por futuro a miséria ou a vadiagem.”
Já naquele tempo a reconhecer que a qualidade da formação depende da qualidade dos formadores!
Até o Diário de Notícias, daquele tempo, apoiava este conceito que desenvolveu no seu editorial de 4 de Outubro de 1903. Lamentavelmente perdemos, no actual Diário de Notícias, agora a página de Boa Vida a que já estávamos habituados… e tantos chefes encontraram espaço! Hoje que tanto se publica sobre a culinária e outros temas ligados à alimentação tínhamos uma referência diária. Outro capítulo em que o futebol ficou a ganhar…!
Comer fora passou a ser uma necessidade e uma obrigatoriedade, pelo que também um prazer. Por isso também a vontade de maior informação.
Foto: Adriana Freire