10.2.08

Comida e arte




É quase impossível ter uma crónica sem que escreva sobre a necessidade de bons produtos para fazer uma boa comida. Qualquer tipo de cozinha só é boa se começar por esse princípio: os produtos.
Em Portugal, quando nos acusam de ter uma culinária pouco rica ou sofisticada podemos, sempre, responder com a qualidade dos nossos produtos agrícolas ou de criação animal. As práticas culinárias são um arrastar de tradições, mas os produtos são o resultado de um aperfeiçoamento constante do que a nossa Natureza sempre nos deu. E poucas vezes cantamos hinos isolados a esses produtos.
As representações artísticas desses produtos são muitas vezes fantasiosas e os produtos aparecem quase como um acidente, ou instrumento básico, para a construção estética. Os produtos estão lá, mas apreciamos e relembramos apenas o conjunto. Quando de repente nos lembramos das fantásticas naturezas mortas de Josefa de Óbidos todos associamos na memória a profusão de artigos crus ou confeccionados, e raramente fixamos as romãs, os queijos, as tigeladas ou os complexos doces aí representados.
Vários artistas, pintores portugueses, dedicaram o seu tempo e artes à pintura de produtos alimentares em naturezas mortas. Às naturezas mortas está quase sempre associado um sentido de inacção que José de Monterroso Teixeira atribui a essas manifestações pictóricas: “…processo que pode conduzir a obras significantemente vigorosas e ricas. Porém não passarão de objectos as mais das vezes agradáveis mas limitados, concedendo que muitas delas serão verdadeiras maravilhas que ultrapassam as «fronteiras do impossível», mas irremediavelmente as naturezas mortas situam-se no vestíbulo do estilo.”
Encontramos representação de produtos alimentares na pintura de naturezas mortas de grandes nomes portugueses. Para além de Josefa de Óbidos quero referir ainda Baltazar Gomes Figueira, ambos do sév. XVII, Joaquim Manuel da Rocha, (Séc. XVIII), Morgado de Setúbal (Séc. XVIII-XIX), Sanches Ramos (Séc. XIX), Luciano Freire, José Queirós, Simão da Veiga e Manuel Bentes, Abel Manta todos do séc. XIX-XX, e depois uma grande variedade do séc. XX desde Maria Toscano Rico, passando por Eduardo Nery até Jacinto Luís. E na estética da pintura, também se reproduzem os bons produtos.

Mas a designação de natureza morta, nos tempos correntes e comparada com os exemplos de pintura até finais do século XIX, parece perder sentido pela dinâmica que a própria pintura contemporânea contem. A pintura contemporânea vai muito para além do retrato dos objectos e dos produtos. Estes adquirem movimento, voam e ajudam a significar sentimentos.
E é nesse sentido que estou a escrever esta crónica e a pensar numa grande pintora, e minha particular amiga, Graça Morais. É difícil escrever sobre os amigos. As palavras adquirem outros significados. Para facilitar não vou escrever sobre ela mas acerca da sua pintura, que provavelmente é ainda mais difícil.
Graça Morais não pinta naturezas mortas. Os seus elementos estão vivos. E quando pinta, e sobretudo desenha produtos alimentares da terra, parecem quase uma consequência do trabalho das mulheres. Os produtos são uma forma de melhor enobrecer o trabalho árduo das suas Escolhidas. Mesmo isolados os seus produtos são poesia tranquilizadora, enquanto nos transportam para o mundo rural de onde provêm.
Quando se lê a pintura de Graça Morais temos a primeira sensação de força das expressões e depois, temos que ler atentamente todos os detalhes. Na série Terra Quente a delicadeza do desenho dos produtos leva-nos para a segunda leitura, não nos entusiasmando com os elementos fáceis. Mas depois lá os descobrimos, os cereais que nos darão o pão, as batatas, os animais de sustento… E nas Deusas das Montanhas lá estão discretamente os produtos que alimentam, que dão alguma riqueza depois do trabalho agrícola e sofrido. A Idade da Terra remete-nos grandiosamente para esses mesmos trabalhos agrícolas. E nas séries Metamorfoses II e III, a grande força do desenho com pouca variação de cor é tão forte que só depois observamos o que as mulheres têm nas mãos.
Ainda voltando à série Terra Quente, não podemos esquecer a simplicidade de batatas greladas, das cerejas, dos produtos das hortas, dos cabritos, das perdizes, das galinhas, … e claro, em outras séries a omnipresente oliveira e as azeitonas, e a matança de porco.
Não significa isto que Graça Morais seja uma pintora dos produtos alimentares. Eles estão naturalmente na sua pintura. São uma referência de apoio ao retrato constante que a pintora faz das suas vivências e sobretudo da sua Terra. E essa constância de representar as suas memórias, e que naturalmente lhe formaram o gosto, dão a força e o carácter forte à sua pintura. Mesmo nas séries Cabo Verde e Japão. E obviamente na recente série Os Olhos Azuis do Mar, nos aparecem os frutos do mar, os peixes e as conchas… e as gaivotas.
Graça Morais não pinta naturezas mortas. Os seus produtos revelam a vida. Saltam da tela ou do papel com a dinâmica feliz da pintura contemporânea. E com os seus sentimentos. Os produtos são a consequência, mas apenas ilustram a Vida.
Apetece pedir: para quando uma exposição temática com referência a estes produtos?
Para ilustrar esta crónica escolhi um desenho simples feito sobre papel de música. A simplicidade de um produto da Natureza: uma pêra. O rigor do desenho com a poesia da música. E ainda uma pintura onde aparece também uma pêra, com outra dimensão, outra função mas também com música e poesia.

BOM APETITE!

© Virgílio Gomes