10.2.08

Que mal nos fez a Alheira?


Já nos habituámos à imprensa sensacionalista. Por vezes até duvidamos da própria notícia.
Todos nós ficámos perplexos com o trabalho publicado no dia 8 de Março no jornal Público com a sequência de título e subtítulo: “Qualidade das alheiras é preocupante em termos de segurança alimentar” e “Bactéria responsável por abortos espontâneos encontrada em 60 por cento dos lotes industriais analisado por cientistas portuguesas”. A notícia assim apresentada leva-nos a pensar que estamos a assistir a terrorismo noticioso. É que para entender a totalidade da mensagem é necessário ler o artigo até ao fim. E, afinal, a bactéria encontrada é eliminada com a cozedura. Ora ninguém come alheiras cruas! Para quê o alarme dos títulos? É que mais grave, cinco dias depois, ainda um canal de TV emitia em notícia de rodapé os mesmos títulos.
Alguém que não gosta de alheiras? Ou uma distracção de escolha de títulos? Um jornal como o Público parece não precisar de utilizar estes meios sensacionalistas. Ou é para obrigar os leitores a lerem a totalidade da página?
A própria ASAE em declarações confirma “O estudo fundamenta-se em critérios da Irlanda e considera que as alheiras são produtos prontos a comer”. “A verdade é que as alheiras são submetidas a um tratamento térmico antes de serem consumidas cruas. E a temperatura faz toda a diferença.” Ainda bem que a ASAE nos tranquiliza.
Naturalmente assistimos depois à indignação dos produtores de alheiras, e de um modo geral, à dos Transmontanos. Alarmismos desnecessários e pouco educativos. A imprensa da Região reagiu e não só os produtores de Mirandela como os de Vinhais prestaram-se a dar declarações sobre a desinformação. Curioso é que não só a Região respondeu a esta ameaça como outros órgãos de comunicação de distribuição nacional, também não deixaram em claro este episódio. Apenas vou citar António Mega Ferreira que na sua Crónica da revista Visão de 15 de Março refere um telefonema durante o qual o seu interlocutor lhe perguntava: “Já viste, agora querem proibir as alheiras.” E explica a calma que tentou transmitir sobre a questão. Mas não deixou de ir a correr comprar alheiras antes que algum “defensor”, possivelmente atacado por excesso de zelo, viesse a retirá-las da circulação. Apraz-me registar que considera as alheiras transmontanas “indiscutivelmente, as melhores”. Como este exemplo quantos não terão acontecido? Pobres das alheiras que continuam a ser um bom petisco e um bom prato, para consolo de muita gente.
Afinal o que dizia o relatório científico? Foi detectada uma bactéria, Listeria monocytogenes, que também se pode encontrar no leite, em queijos, e outros produtos alimentares. Acontece que a bactéria é eliminada por elevadas temperaturas. Portanto, cozinhando bem a alheira, a bactéria é morta.
Apetece sugerir que esta mensagem é que deveria estar contida nos títulos atrás referidos. Ou apenas “Os perigos da alheira mal cozida”.
Neste aspecto tenho vontade, uma vez mais, quase de escrever um manifesto sobre a confecção da alheira. Ou melhor, sobre a forma de a prepararem nos restaurantes lisboetas.
Habitualmente servem-nos a alheira frita, à qual depois retiram a pele, acompanham com batata frita e ainda colocam um ovo estrelado. Ninguém em Trás-os-Montes come alheiras assim preparadas. Também não se comem, naturalmente, durante o Verão.
Fui habituado a comer a alheira, como prato principal, preparada em cima de uma frigideira sem gordura. A alheira é então picada e a sua própria gordura é expulsa. É essa gordura, e se vai mantendo na frigideira, que vai ajudar a cozinhar a alheira. Quando a alheira rebenta, e aqui está medo dos restaurantes que acham destruída a apresentação, é para mim um prazer pois aquela massa que se solta vai ficar estaladiça e constitui, para mim, o melhor da alheira. Depois sempre acompanhada com grelos. Ou cozidos, ou salteados com um pouco de azeite e alho.
Como petisco é só colocá-la sobre chapa grelhadora ou grelha em lareira, virá-la para cozer em toda a volta, e depois cortá-la aos pedaços.
Segundo o famoso Francisco Manuel Alves, o Abade de Baçal, a necessidade ajuda ao engenho, e fruto da perseguição que eram permanentemente alvo pela Inquisição, os judeus, “…não podendo estes comer carne de porco por imposição da sua fé, imaginaram um enchido, que, embora semelhante aos enchidos que por essa época eram o prato forte das gentes, não levasse a carne proibida.” O Abade de Baçal chegou a designar a alheira como o chouriço judeu. Manuel Mendes, chamando-lhe chouriça da resistência, vem também referir a origem da alheira no século XV, produto da necessidade de judeus e cristãos novos fingirem consumir um enchido, mas sem carne de porco. A alheira conteria várias carnes incluindo muita caça. Aliás hoje em dia produzem-se alheiras, também, só de caça.
Esta ideia de associar o aparecimento da alheira aos judeus fixados próximo da zona raiana, para facilmente fugirem para Espanha, parece querer justificar a prática da alheira mais ajustada à terra fria transmontana. Durante os finais do século XV e princípios do século XVI, ser-lhes-ia permitido atravessar as fronteiras em sentido da perseguição de que seriam alvo, tendo as coroas, portuguesa e espanhola, toleradas as infiltrações. Os judeus eram trabalhadores, detentores de fortuna e comerciantes necessários.
Mas durante quanto tempo a alheira foi confeccionada sem carne de porco? A partir de quando iniciaram a introdução da carne de porco? Não dispomos de registos. No entanto, o meu amigo e conterrâneo Armando Fernandes prometeu para breve uma nova teoria para esclarecimento, ou maiores dúvidas, sobre a história da alheira. Será que nos vai convencer da lenda da alheira?
BOM APETITE!
© Virgílio Gomes