Quando por facilidade hoje falamos em comida simples, estamos a uma distância tão grande dos conceitos de cozinha primitiva, teoria tão bem desenvolvida por Felipe Fernandez-Armesto, como quase da distância que nos separa da invenção, ou aparecimento, do fogo.
O conceito de simples, hoje em dia, relaciona-se com conceitos de modernidade que naturalmente, e de forma empírica, já eram postos em prática noutros tempos; reagiam espontaneamente à Natureza. Hoje temos que reflectir, e aprender, para estar em sintonia com a Natureza. Males necessários da globalização galopante, daí o esforço (em contra ponto) necessário pela biodiversidade. Hoje, a luta permanente pelo que é autêntico.
Os conceitos de simples, mesmo nas artes culinárias, estão associados a conceitos de reflexão intelectual, capazes de ditarem modas. E com as artes culinárias desenvolve-se a gastronomia.
O que é simples é bom. O que é simples é fácil de aprender a fazer, e é mais fácil de aperfeiçoar.
O percurso da alimentação no mundo e depois de tantas gerações passou naturalmente pelo aparecimento ou invenção da cozinha. É este facto que vem alterar definitivamente, na história, as grandes mudanças sociais. A comida deixa de ter uma função apenas de sustento para criar circuitos de produção e distribuição. Em simultâneo as sociedades associam à alimentação rituais e magias, que perduram ainda nas sociedades de hoje.
Com a aprendizagem, e necessidades criadas pela nova produção alimentar, começam a distinguirem-se novas cozinhas. Assistimos assim à revolução do pastoreio. E como consequência, ou em paralelo, desenvolvem-se as actividades relacionadas com a domesticação e criação animal, selectiva.
Não podemos esquecer que hoje em dia temos que analisar os grandes movimentos, ou tradições, alimentares numa perspectiva cultural. E quando falamos em cultura temos obrigatoriamente que sentir as vertentes: artística, religiosa, geográfica, económica e científica.
Com os avanços civilizacionais uma grande e nova actividade desenvolve-se: a agricultura. 8.000 anos a.c. encontramos técnicas muito desenvolvidas de irrigação do Nilo, e temos referência de produtos alimentação em número muito elevado e que muitos desses produtos só chegam à Nova Europa depois das Descobertas. A ascensão e queda de algumas civilizações clássicas, revelam novos produtos e hábitos. Mas também atrasam a divulgação de outros pela necessidade de destruição da história pelo avanço das forças de ocupação.
A comida aparece-nos então como um meio e um índice de diferenciação social, desde a época medieval até ao século XX. Haveria designadamente dois tipos de alimentação: a de elite, palaciana ou burguesa e a do povo, a das grandes massas.
Com as Descobertas temos uma nova actividade em grande movimento no Mundo. O comércio de longa distância vem fazer aparecer os novos produtos e a partir daí o aparecimento do primeiro conceito de cozinha de fusão. As trocas intercontinentais obrigam a um novo intercâmbio de culturas que ultrapassam a alimentação. E os novos movimentos de mudança de mentalidades.
Chegados ao nosso tempo, e com a industrialização mundial, fomos obrigados a uma revolução ecológica, e aos reconhecimentos de uma agricultura biológica.
Viajámos de uma cozinha primitiva, a uma cozinha moderna ou evoluída, passámos pelo fast-food, depois pela cozinha científica e molecular, e parece querermos voltar à alimentação primitiva mas cuidada. O regresso às coisas simples.
Mesmo no nosso tempo não apagamos rapidamente as marcas da tradição alimentar. Certo que temos a informação, e modo de agir mais rápida. E temos mais opções. Mas também temos o tempo mais controlado e outro tipo de ambições. E exigências profissionais e sociais.
Quando nos anos 70 surgem os primeiros conceitos de Nouvelle Cuisine surgem logo os conservadores, e clássicos da época, reclamando a necessidade de manutenção das tradições. Precipitaram-se os tradicionalistas pois os inventores da nova cozinha, contemporânea, criam uma nova cozinha com base em princípios fundamentais associados a princípios de valorização dos produtos, simplificação da técnica culinária e eliminação de complementos inúteis.
Assumo que só há dois tipos de cozinha: a boa e a má. Independentemente das categorias regionais, nacionais ou internacionais.
Mas afinal o que faz a nova cozinha? Começa com o conceito de cozinha do mercado, quer dizer, utiliza os produtos que surgem na época que a Natureza naturalmente os produz, o que significa a época em que eles, produtos, têm o melhor sabor. Depois valorizar as cozinhas regionais, evitando complicações necessárias e reduzindo os tempos de cozedura. Associado a este tema surge também o conceito das cozeduras exactas que significa que cada produto tem um seu tempo, e diferenciado, de cozedura. Evitam marinadas e molhos pesados. Tem em conta a componente dietética e sente a necessidade de inovar constantemente.
Caminhamos portanto para uma cozinha mais simples, mais autêntica, com uma preocupação de valorização do produto de base.
Não esqueçamos que recentemente Dan Barber declarou que “o futuro da restauração no Mundo” será dos restaurantes que produzam os seus próprios produtos para o menu, em sistema de auto-suficiência e em rigor ecológico. Estamos a falar de gastronomia de elite??? Será a exigência do mercado???
Não posso deixar de referir o famoso Anthony Bourdain no seu livro “A Cook’s Tour” (Em busca do Prato Perfeito) que tendo dado a volta ao Mundo à procura de inovações culinárias autênticas, dedica o seu primeiro capítulo a Portugal. A sua surpresa vai para a espontaneidade, autenticidade, e entusiasmo das confecções primárias surgidas na sequência de uma matança de porco. Mas mais que a surpresa da comida, o seu fascínio foi ao “perceber o que está a faltar na experiência alimentar do americano médio. Grandes grupos de pessoas comendo juntas. O elemento familiar. A aparente crueldade de contactar próximo ao que se come”. E que numa matança de porco, come-se tudo. Mas de forma simples.
Hoje cada vez mais queremos apreciar o autêntico. O simples e sem constrangimentos.
BOM APETITE!
© Virgílio Gomes