31.3.08

Inverno e Outros Louvores

O Inverno mostra-nos o que de melhor tem Trás-os-Montes e Alto Douro. E que aprendeu a transformar a partir da excelência da natureza, e a comida a apetecer feita no tacho, e bem quente.
Entramos no período de gozar os principais enchidos, pós matança de porco. Vêm as feiras do Fumeiro. Os meus aplausos para os vencedores dos melhores produtos postos em concurso. Todos nós devemos estar gratos às organizações que garantem a continuidade dos produtos que identificam, em parte, o património gastronómico transmontano. Permito-me considerar o Salpicão de Vinhais como o enchido rei de Portugal, ou o seu mais nobre.
Insisto em considerar-me com sorte por ter sido educado com a comida caseira da minha Mãe e da família, garantindo-me, de forma continuada e gradualmente, a formação do gosto, as referências do crescimento, para agora poder sentir saudade daqueles sabores, cheiros, e outras emoções. Segundo Alice Vieira, dos sete pecados capitais, a Gula é “de todos o mais simpático e agradável.”
Na matança de porco, concentram-se todos os saberes acumulados por gerações. A matança de porco não deve ser vista só como um evento isolado. A perspectiva da matança começa quando se inicia a engorda dos porcos e a selecção da sua alimentação. Lembro-me bem, ainda miúdo, das recolhas, casa a casa, das biandas para alimentar os porcos destinados às matanças domésticas. E estes porcos eram alimentados não só pelos restos das comidas caseiras, como por outros produtos da natureza como abóboras e fruta. Tudo que fosse alimentar eles comiam. E do chão. Daí umas das razões para serem animais proscritos, ou impuros, em algumas religiões. Já lá vai o tempo em que para mostrar a sua ligação ou amizade a famílias de cristãos velhos se ostentava o consumo de carne e toucinho de porco. Em Espanha quanto maior fosse o consumo público de carne de porco maior seria a “pureza do seu sangue”. O porco como elemento diferenciador de religiões foi de tal modo importante que o termo marrano chegou a designar alguns cristãos-novos.
Por essas razões, ou apenas de economia doméstica, estes povos desenvolveram uma prática de utilização máxima da carne de porco, comendo-se na sua totalidade, da ponta do focinha à ponta do rabo, incluindo as suas entranhas.
Recentemente algumas vozes, por vezes pouco esclarecidas, vieram a terreiro acusando autoridades de quererem extinguir tradições tão enraizadas na população. Certifiquem-se que não é a ASAE que quer extinguir as matanças de porco. As matanças podem continuar, os cuidados é que têm que ser maiores e ajustados à Lei. Porque se exige um maior rigor no controle higieno-sanitário? Por querer assegurar a saúde pública? As emoções às vezes ultrapassam as razões, e todos sabemos que é sempre mais fácil criticar do que analisar as questões pela sua raiz.
Quando se acusa a ASAE, nem sempre se sabe o que se diz. E relembro recentemente aquele advogado que foi notícia em todos os jornais televisivos pela acção que iria, em nome de vários restaurantes, por contra o Estado e a ASAE pela destruição do património culinário português. Coitada da gastronomia portuguesa! Ora o único exemplo apresentado nesses jornais era a proibição de usar as colheres de pau! Não existindo qualquer proibição à utilização de colheres de pau nas cozinhas “desde que estas se encontrem em perfeito estado de conservação”, os agentes da ASAE o que fizeram foi o aconselhamento de utensílios de plástico ou silicone que ajudam a minimizar os riscos de contaminação dos produtos alimentares. Esta prática já é corrente, há vários anos, em muitos restaurantes e escolas hoteleiras que perceberam as vantagens.
Muitos disparates se têm dito e escrito sobre o assunto. Para mim a ASAE não é mais do que um agente encarregado pelo Estado (Governo) de fazer cumprir uma Lei (possivelmente mal elaborada). Esta Lei já vem desde 1996 e possivelmente os nossos deputados, ocupados com outras questões, não tiveram o trabalho de elaborar uma Lei ajustada às nossas tradições e limitaram-se a traduzir leis de outros países sem qualquer tipo de tradição gastronómica e raízes regionais tão fortes. Foram os deputados e outros políticos que não se acautelaram com legislação que defendesse o nosso património cultural. Limitaram-se posteriormente a classificar, e de forma pouco eficiente e duradoura, a gastronomia como património, mas rapidamente extinguiram o organismo, Comissão Nacional de Gastronomia, que lhe poderia dar alma, e continuamos sem alternativa.
Mas mais grave do que este cumprimento de leis, que garantem essencialmente questões de higiene e saúde pública, são os comportamentos correntes que levam ao esquecimento das nossas gastronomias regionais. Comportamentos de todos nós, arrastando-nos em processo de alteração de mentalidade, sem disso termos consciência.
Porque se deixam as crianças alimentar sem sopa?
Porque se deixam as crianças ir directamente, e com frequência, aos locais de “fast-food”?
Porque se ensina rapidamente o número de telefone dos distribuidores de pizzas?
Porque se deixou de cozinhar com o arroz Carolino?
A lista de perguntas seria longa se me permitisse referir todos os elementos do comportamento recente dos portugueses em matéria alimentar.
Retomemos o exercício de reflectir, pelo menos ao fim-de-semana, em regressar aos nossos sabores regionais e relembrar as cozinhas das Mães e das Avós.
Coragem e entusiasmo.
BOM APETITE!

Publicada na Revista ARESP Março 2008

Desenho de Graça Morais "Matança de Porco"